terça-feira, 12 de abril de 2011

O Dia depois do desenvolvimento

Por José de Souza Silva
Pesquisador da EMBRAPA sobre as relações
Ciência-Tecnologia-Sociedade e Inovação (CTSI)

 

A humanidade está à deriva. O modelo global de desenvolvimento da sociedade industrial—obra prima da civilização ocidental - colapsou. Sem carta de navegação prospectiva, a humanidade viaja cega, sem rumo claro a seguir nem porto seguro aonde chegar. As crises globais desde os anos 1960 não são independentes; elas têm a mesma origem e, em seu conjunto, indicam a crise da civilização ocidental e o fracasso da sociedade industrial. Em última instância, elas são crises das premissas que sustentam a coerência da civilização ocidental, que não tem correspondência com a complexidade, diversidade e diferenças constitutivas da realidade planetária. O modelo global de desenvolvimento da sociedade industrial promove uma forma de ver o mundo e de nele intervir para transformá-lo que inclui um modo de produção e consumo em desarmonia com as potencialidades e limites da Terra. Por isso estamos vulneráveis, do cidadão ao Planeta.

Porém, se o modelo de desenvolvimento da época do industrialismo não serve de referência para reconstruir a sustentabilidade da humanidade e do planeta, por que, historicamente, prevaleceu este e não outro modelo? Qual é sua gênese? Que premissas devem substituir as suas no esforço para construir comunidades e sociedades mais felizes com modos de vida sustentáveis? Todo esforço para construir o futuro requer também critérios do passado. Devemos retroagir ao final do século XV e início do século XVI quando impérios da Europa ocidental estabeleceram várias estratégias para superar o modelo agrário de desenvolvimento da sociedade feudal, facilitando a consolidação do modelo mercantil de desenvolvimento do capitalismo emergente. No final do século XVIII, este foi transformado no modelo industrial de desenvolvimento do capitalismo, cuja crise atual é a mais profunda, e talvez a última, de sua longa, conturbada e contestada história.

No final do século XV, o capitalismo encontrava duas barreiras críticas para sua emergência, a visão teológica do mundo e o pensamento filosófico da Grécia antiga, ambos hostis à natureza do capitalismo. Para a Bíblia e Aristóteles, a Terra era fixa e o centro do universo, onde o homem não deveria aspirar mais do que Deus lhe deu, já que era mais fácil um camelo passar pelo fundo de uma agulha do que um rico entrar no reino de Deus. A macro-estratégia do capitalismo foi desqualificar a visão divina da realidade e o pensamento filosófico dos antigos, instituindo a visão científica do mundo e o pensamento filosófico utilitarista. Tudo começou com o heliocentrismo de Copérnico, quem fez da Terra um planeta periférico de um entre muitos sistemas no universo infinito, avançou com o utilitarismo de Bacon, quem disse “conhecimento é poder, quando é útil à acumulação”, e culminou com o mecanicismo de Newton, quem esterilizou a realidade com sua síntese do mundo-máquina escrito em linguagem matemática e caracteres geométricos.

Se o universo é entendido a partir de leis matemáticas universais, que explicam sua natureza e funcionamento, os modelos concebidos a partir destas leis são também universais e podem ser impostos sobre as realidades locais. Esta visão des-historializou e descontextualizou a experiência humana. Com a matematização da existência, a realidade homogênea inspirou intervenções dirigidas ao seu controle e exploração através da ciência. Os que promoveram a superioridade do sistema capitalista sobre o feudal também influenciaram o esforço da ciência para conceber um pensamento amigável ao capitalismo. Dado seu objetivo de acumulação infinita, o capitalismo instituiu apenas uma estratégia para seu sucesso, o crescimento econômico igualmente ilimitado, complementada pelo lucro máximo como o critério solitário para decidir sobre investimentos. Em sua lógica expansionista, o capitalismo impõe o acesso inescrupuloso a mercados cativos, matéria prima abundante, mão de obra barata, mentes obedientes e corpos disciplinados, o que implica na violação sistemática do humano, do social, do cultural, do ecológico e do ético. Globalmente, isso só foi possível pela invenção político-ideológico da dicotomia superior-inferior concebida a partir da idéia de raça que permitiu a classificação social da humanidade desde 1492.

Segundo o direito do mais forte, existem raças superiores e raças inferiores. Nesta perspectiva, o mais forte, superior, tem direito à dominação, enquanto o mais débil, inferior, tem a obrigação da obediência. Mas os termos “superior” e “inferior” revelavam a intenção de dominação para a exploração por parte dos impérios europeus. Era crítico usar uma idéia-força para camuflar a dicotomia superior-inferior, convertendo rejeição em aceitação e dominação em hegemonia. A ‘idéia de progresso’ domesticou mentes e conquistou corações, mobilizando o interesse e compromisso de líderes e governos em todos os continentes, independente da origem geográfica, inclinação ideológica ou preferência religiosa. Capitalistas, socialistas e comunistas, todos aceitaram o progresso como meta universal. Com a ciência e tecnologia ocidentais, o progresso significava uma prosperidade material crescente, ilimitada e benéfica para todos. Nesta idéia, a dicotomia superior-inferior emergiu travestida no binômio civilizado-primitivo, junto com a divisão racial global do trabalho onde a escravidão era para os negros e a servidão para os índios; o trabalho assalariado era uma quase exclusividade dos brancos. Com esta classificação, o discurso do progresso promoveu o colonialismo como uma missão nobre. Colonizar significava civilizar. O imperativo moral de fazer o bem pressiona o civilizado a perceber na colonização sua oportunidade de compartilhar com os primitivos os segredos de seu sucesso. Para satisfazer à voracidade inerente ao processo de acumulação—com concentração—do capitalismo, a estratégia transformou conquistas-para-explorar em descobrimentos-para-civilizar, em nome do progresso, que exigia sacrifícios extremos antes que seus benefícios estivessem disponíveis.

O capitalismo mobilizou a ciência para satisfazer a necessidade permanente de inovação para apoiar seu crescimento ilimitado e superar as crises recorrentes derivadas de suas contradições internas. Sob a tradição filosófica do Positivismo, a ciência estabeleceu um paradigma universal de inovação, dominante nos últimos séculos, que influenciou a natureza e dinâmica dos modelos nacionais de desenvolvimento em países ocidentais ou “ocidentalizados”. Para isso, a ciência moderna foi imposta em todos os continentes. No início da colonização, prevaleceu uma ciência imperial praticada por cientistas dos impérios ocidentais. A expansão da atividade agrícola nas colônias exigiu a ampliação da força científica de trabalho, fazendo surgir uma ciência colonial dependente da cultura, tradição e agenda científicas da Europa onde os cientistas coloniais eram formados. Depois da Segunda Guerra, os Estados Unidos promoveram no Sul o fortalecimento da ciência nacional para criar a ilusão da independência científica, ao mesmo tempo em que criavam instituições globais, espaços multilaterais e arranjos institucionais supranacionais que reduziam a autonomia das sociedades nacionais e ampliavam o poder das corporações transnacionais, impondo a ideologia do mercado que faz surgir uma ciência comercial, apátrida, sem consciência, comprometida apenas com o lucro e a acumulação, onde quer que o capitalismo assim o exija. 

Mas o Holocausto e as bombas de Hiroshima e Nagasaki quebraram o encanto do progresso, desnudaram o mito da neutralidade científica e revelaram a agenda oculta dos “civilizados”. A nova potencia hegemônica criou uma nova estratégia político-ideológica para facilitar sua própria dominação para a exploração, uma inovação semântica para diferenciar-se dos antigos impérios. Substituiu a palavra civilizado por “desenvolvido” e a palavra primitivo por “subdesenvolvido” para usufruir das vantagens da dicotomia superior-inferior. Em 20 de Janeiro de 1949, Harry Truman institucionalizou o binômio desenvolvido-subdesenvolvido no discurso de posse como Presidente dos Estados Unidos. Em 14 de Agosto de 1952, outra classificação da humanidade ocorreu quando Alfred Salvy publicou em Paris um artigo sob encomenda: Três Mundos, um Planeta. Como a medida do desenvolvimento era o grau de industrialização, o Primeiro Mundo era constituído pelas nações industrializadas do campo capitalista sob a liderança dos Estados Unidos, o Segundo Mundo, pelo conjunto dos países industrializados do campo socialista sob a liderança da União Soviética, e os países pouco ou não industrializados constituíam o Terceiro Mundo. Está última classificação é tão frágil que perdeu seu sentido em 1991; com o fim da URSS, não existe o Segundo Mundo, apesar de que ainda nos referimos ao Primeiro e Terceiro Mundo. Tudo foi camuflado pela ‘idéia de desenvolvimento’ no lugar da ‘idéia de progresso’.

Historicamente, a dicotomia superior-inferior estabeleceu conceitos, indicadores, parâmetros e categorias que distinguem os superiores dos inferiores, definindo os últimos como aqueles que só têm problemas e carecem de certos bens e serviços, enquanto os superiores são definidos como os que têm todas as soluções que os inferiores necessitam, e dispõem dos bens e serviços que eles não têm.




Para fazer a “ponte amiga” entre as soluções, bens e serviços dos superiores e os problemas e carências dos inferiores, a “comunidade internacional”, integrada pelo vencedor da Segunda Guerra Mundial e seus aliados, superiores, agora chamados de “ricos”, criou a “cooperação internacional” para formar “sociedades agradecidas”, que facilitam seu acesso a mercados cativos, matéria prima abundante, mão de obra barata, mentes dóceis e corpos disciplinados dos inferiores, agora chamados de “pobres”. Esta relação de “ajuda” contribui à sustentabilidade do capitalismo ao reproduzir o modelo internacional de desenvolvimento que o viabiliza. A “cooperação internacional” introduz nos modelos nacionais as mesmas contradições globais constitutivas do modelo internacional, incluindo o modo de produção e consumo que cria desigualdades e injustiças, além de violar condições, relações, significados e práticas que geram e sustentam a existência das diferentes formas e modos de vida no Planeta. Nos países, a lógica do binômio desenvolvido-subdesenvolvido se reproduz entre e dentro de suas regiões.

Mas, desde o final do século XX, um número crescente de atores sociais e institucionais percebe o “desenvolvimento internacional” como uma hipocrisia organizada onde a maior habilidade da comunidade internacional consiste em fingir que aceita as críticas ao modelo de desenvolvimento em crise, através da manipulação de adjetivos adicionados ao termo desenvolvimento, para assegurar que o mesmo continuará significando apenas crescimento econômico. É assim que desenvolvimento local significa apenas crescimento local, desenvolvimento territorial significa crescimento que toma em conta o território, e desenvolvimento sustentável significa crescimento econômico que se sustenta no tempo, conforme o próprio da Informe da Comissão Brundtland que, ao final, reconhece que sua proposta é viabilizar “uma nova era de crescimento econômico”.

Por isso, como o progresso no passado, o desenvolvimento no presente é imposto como meta universal, para que o crescimento econômico seja a única estratégia para atingi-la. Um indicador desta visão é o conjunto das iniciativas oficiais da comunidade internacional: educação para o desenvolvimento, comunicação para o desenvolvimento, como se o desenvolvimento fosse o fim e não um processo. Por que, ao invés de serem dirigidas ao desenvolvimento, estas iniciativas não são dirigidas à construção de comunidades e sociedades mais felizes com modos de vida sustentáveis? Num enfoque evolucionista, o desenvolvimento é promovido a partir da premissa de que existe um modelo de sociedade perfeita que todos devem aspirar. Há um estado de subdesenvolvimento do qual é imperativo libertar-se, e um estado de desenvolvimento que todos podem lograr adotando o modelo de desenvolvimento dos que já alcançaram este estado superior. No entanto, segundo o enfoque, o desenvolvimento como meta inclui “fases” mecânicas inevitáveis que todos devem superar rumo ao objetivo final, ser desenvolvido. Mas este parece ser um fim móvel, que se distancia cada vez mais dos que se esforçam para alcançá-lo.

Porém, o desenvolvimento como meta está em crise irreversível. Depois de cinco séculos da idéia de progresso e seis décadas da idéia de desenvolvimento, a humanidade nunca este tão desigual e o planeta tão vulnerável. Neste contexto, a América Latina já é a mais desigual das regiões do mundo. A fumaça nas chaminés das fábricas, antes símbolo do progresso do industrialismo, hoje é condenada como símbolo de contaminação. A humanidade experimenta sua terceira mudança de época histórica. A primeira ocorreu quando o paradigma do extrativismo foi superado pelo do agrarianismo com a invenção da agricultura 12 mil anos atrás. A segunda aconteceu na fim  do século XVIII quando o paradigma do agrarianismo foi superado pelo do industrialismo. A terceira começou na segunda metade do século XX quando os efeitos combinados de três revoluções—tecnológica, econômica e cultural—criaram rupturas e emergências paradigmáticas que estão transformando qualitativa e simultaneamente a natureza e dinâmica das relações de produção e poder, modos de vida e cultura, dominantes na época histórica do industrialismo.

Uma revolução tecnológica (biotecnologia, nanotecnologia, informática) promove uma visão cibernética de mundo onde a realidade é uma rede de relações na qual tudo é reduzido a informação; o paradigma que lhe corresponde é o neo-racionalismo que aceita a complexidade da realidade, mas assume que esta existe de forma objetiva e independente da percepção humana. Uma revolução econômica (espaços multilaterais, arranjos instituições supranacionais, regras transnacionais, liberalização, privatização) promove uma visão mercadológica de mundo onde a realidade é um imenso mercado constituído de arenas comerciais e tecnológicas onde tudo é reduzido a capital e mercadoria; o paradigma que lhe corresponde é o neo-evolucionismo no qual a existência é uma luta pela sobrevivência através da competição. Uma revolução cultural (movimentos feministas, ambientalistas, indigenistas, pelos direitos humanos, maior participação da sociedade civil) promove uma visão contextual de mundo onde a realidade emerge como um imenso ágora, espaço de interação no qual ocorre uma trama de relações, significados e práticas entre todas as formas e modos de vida; o paradigma que lhe corresponde é o construtivismo no qual a realidade é socialmente construída e socialmente transformada. Estas revoluções, com suas visões de mundo e paradigma correspondentes, forjam cenários futuros nos quais outros mundos possíveis tentam influenciar os imaginários científicos, técnicos e sociais. Mas nem tudo que é possível é relevante. Reivindiquemos outro mundo relevante para todas as formas e modos de vida, e não apenas outro mundo possível.

 
Os trabalhadores  não são ferramentas

Então, quo vadis, humanidade? No contexto da atual mudança de época histórica, para onde caminha a humanidade em geral e os trabalhadores em particular, desde a perspectiva futura de cada uma das três revoluções em curso? Rede, arena ou ágora? No mundo-rede, a realidade é des-historializada, descontextualizada e esterilizada quanto à existência de formas e modos de vida; os trabalhadores continuam vistos como recursos humanos, por um lado, máquinas biológicas cuja eficiência produtiva deve ser aperfeiçoada, ou, por outro lado, paradoxalmente, tidos como obstáculos por cometerem “erros humanos”, substituídos por máquinas cada vez mais “inteligentes”. No mundo-arena, a realidade é idêntica à dos gladiadores que necessitam eliminar todos os competidores para saírem da arena como os únicos vencedores; os trabalhadores são vistos como capital humano ou item de custo. (Foto: Cartaz da CSC da Bélgica) No mundo-ágora, prevalece a realidade da interdependência entre todos os atores humanos e não-humanos onde a sustentabilidade é uma propriedade emergente da interação solidária; os trabalhadores são talentos humanos já que sua imaginação lhes permite fazer perguntas nunca feitas e propor além do conhecimento existente.

Nesta mudança de época, a globalização neoliberal avançou apoiada nas revoluções tecnológica e econômica, violando a relevância do humano, do social, do cultural, do ecológico e do ético, as dimensões cultivadas pela revolução cultural promovida pelos movimentos sociais no mundo. A “comunidade internacional” promove o desenvolvimento como meta, e não o bom viver como fim; a partir de falsas premissas, faz falsas promessas e propõe soluções inadequadas, como a criação de uma base de dados sobre os recursos naturais da Terra pela NASA para a gestão sustentável do Planeta, sem questionar o modelo ocidental de produção e consumo responsável pela crise ambiental global, e que afeta a saúde física e mental dos trabalhadores. Isso pospõe o dia em que o relevante já não existe apenas em certos idiomas, não é criado apenas por certos atores e não nos chega apenas desde certos lugares, que nunca coincidem com nossos idiomas, atores e lugares; o dia em que podemos aprender inventando desde ‘o local’, para não perecer imitando desde ‘o global’; o dia em que seremos livres do monopólio do paradigma clássico—universal, mecânico e neutro—de inovação, para gerar opções contextuais, interativas e éticas; o dia em que seremos livres do desenvolvimento como meta; o ‘dia depois do desenvolvimento’. Até quando? A que custo?